quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Crônicas - Parte 1 - O mundo das crônicas


VAMOS “SABOREAR” UM POUCO DAS CRÔNICAS...


   As aprendizagens, gostos, implicam muito em leituras e estamos querendo que vocês, nossos leitores, leiam algumas CRÔNICAS de renomados autores do meio literário. Não haveria outro modo de simpatizar com as crônicas sem conhecê-las, sem ouvi-las e perceber sua sutileza em todas as histórias. 

As CRÔNICAS:

Relatam fatos do cotidiano;
Têm o objetivo de propor uma reflexão ao leitor;
Apresentam tempo e espaço reduzidos(limitados);
Possuem narrador em primeira e terceira pessoa;
Podem apresentar uma historia de humor(crônica narrativa), reflexões ou comentários sobre acontecimentos ou pessoas(crônicas reflexivas) e sentimentos do autor(crônica lírica).

ALGUMAS CITAÇÕES:

     “A CONSTRUÇÃO DE UM TEXTO EQUIVALE À CONSTRUÇÃO DE UMA CASA: CADA FRASE, CADA SILÊNCIO ONDE RESIDE A SIGNIFICAÇÃO A SER DESCOBERTA PELO LEITOR É UMA ESPÉCIE DE QUARTO ONDE O CRONISTA GUARDA OS SEUS SEGREDOS E A SUA SOLIDÃO. (...) O AUTOR ESTÁ CONSTRUINDO A SUA CASA INTERNA, PROCURANDO DISCRIMINAR CADA APOSENTO E ESTABELECENDO AS LEIS QUE GOVERNARÃO O SEU UNIVERSO. (...)ESSA CONSTRUÇÃO NADA MAIS É DO QUE A COMPREENSÃO DO QUE SOMOS, PARA MELHOR PROSEGUIRMOS EM NOSSA VIAGEM EXISTENCIAL”.
                                                                                                 (SÁ, 1987) 

“Não se imagina uma literatura formada de grandes cronistas e acrescenta: a crônica não é um ‘gênero maior’ (...) ‘Graças a Deus’, - seria o caso de dizer, porque sendo assim ela fica perto de nós. E para muitos pode servir de caminho não apenas para a vida, que ela serve de perto, mas para a literatura (...). Por meio dos assuntos, da composição aparentemente solta, do ar de coisa sem necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo o dia... Principalmente porque elabora uma linguagem que fala de perto ao nosso modo de ser mais natural”.                                                          
                                                                          (Candido,  1980, p. 5)

“NA CRÔNICA, O TEMPO É O CENTRO DA NARRAÇÃO DOS FATOS, MAS ESTES NÃO SÃO NARRADOS TAL COMO ACONTECERAM, MAS COMO OS RECORDA O CRONISTA. ESTE É UM HÁBIL ARTESÃO DA EXPERIÊNCIA E, AO TRANSFORMAR FATOS EM MATÉRIA NARRADA, RESIGNIFICA OS ACONTECIMENTOS DE ACORDO COM AS IMPRESSÕES QUE OBTEVE DESTES.”
                                                                                               (SÁ, 1987) 
 (Observações realizadas a partir das aulas de Leitura e Produção de Texto II).

NAS CRÔNICAS QUE SEGUEM, ALGUNS AUTORES COMENTAM SOBRE A PRÓPRIA CRÔNICA, OUTROS A RESPEITO DE SUA RELAÇÃO COM A ESCRITA OU AINDA MENCIONAM SOBRE AS PALAVRAS...

BOA LEITURA!!!!


Crônicas - Parte 2 - O nascimento da crônica - Machado de Assis


 O nascimento da crônica - Machado de Assis (1839/1908)



   Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor!    Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a crônica.
   Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem.
   Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano.
   Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia.   Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dia que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopando que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.
   Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e contUdo, leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz do que outra Não afirmo sem prova.
   Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!
Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço.           O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, c dar às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia?

(SANTOS, J.F. As Cem Melhores Crônicas Brasileiras. Objetiva,  Rio de Janeiro, 2007).

Crônicas - Parte 3 - O desaparecido - Rubem Braga


O Desaparecido - Rubem Braga (1913/1990)


   Tarde fria, e então eu me sinto um daqueles velhos poetas de antigamente que sentiam frio na alma quando a tarde estava fria, e então eu sinto uma saudade muito grande, uma saudade de noivo, e penso em ti devagar, bem devagar, com um bem-querer tão certo e limpo, tão fundo e bom que parece que estou te embalando dentro de mim.
   Ah, que vontade de escrever bobagens bem meigas, bobagens para todo mundo me achar ridículo e talvez alguém pensar que na verdade estou aproveitando uma crônica muito antiga num dia sem assunto, uma crônica de rapaz; e, entretanto, eu hoje não me sinto rapaz, apenas um menino, com o amor teimoso de um menino, o amor burro e comprido de um menino lírico. Olho-me no espelho e percebo que estou envelhecendo rápida e definitivamente; com esses cabelos brancos parece que não vou morrer, apenas minha imagem vai-se apagando, vou ficando menos nítido, estou parecendo um desses clichês sempre feitos com fotografias antigas que os jornais publicam de um desaparecido que a família procura em vão.
   Sim, eu sou um desaparecido cuja esmaecida, inútil foto se publica num canto de uma página interior de jornal, eu sou o irreconhecível, irrecuperável desaparecido que não aparecerá mais nunca, mas só tu sabes que em alguma distante esquina de uma não lembrada cidade estará de pé um homem perplexo, pensando em ti, pensando teimosamente, docemente em ti, meu amor.
                                                                                              (BRAGA, R. A Traição das Elegante.  Sabiá, Rio de Janeiro, 1969)



Crônicas - Parte 4: A última Crônica - Fernando Sabino

A última crônica - Fernando Sabino (1923-2004)



   "A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
   Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
   Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês.
   O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
   São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.


(SABINO, F. A Companheira de viagem. Editora Record, 1965).


Crônicas - Parte 5: Crônica de Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade (1902-1937)



    Crônica tem esta vantagem: não obriga ao paletó e gravata do editorialista, forçado a definir uma posição correta diante dos grandes problemas; não exige de quem o faz o nervosismo saltitante do repórter, responsável pela apuração do fato na hora mesma em que ele acontece; dispensa a especialização suada em economia, esporte, política nacional e internacional, religião e o mais que imaginar se possa. Sei bem que existem o cronista político, o esportivo, o religioso, o econômico, etc., mas a crônica de que estou falando é aquela que não precisa entender de nada ao falar de tudo. Não se exige do cronista geral a informação ou o comentário preciso que cobramos dos outros. O que lhe pedimos é uma espécie de loucura mansa, que desenvolva determinado ponto de vista não ortodoxo e não trivial, e desperte em nós a inclinação para o jogo da fantasia, o absurdo e a variação do espírito. Claro que ele deve ser um cara confiável, ainda na divagação. Não se compreende, ou não compreendo, cronista faccioso, que sirva a interesse pessoal, ou de grupo, porque a crônica é território livre da imaginação, empenhada em circular entre os acontecimentos do dia, sem procurar influir neles. Fazer mais do que isso seria pretensão descabida de sua parte. Ele sabe que seu prazo de atuação é limitado: minutos no café da manhã ou à espera do coletivo.               
                                                                           
(Carlos Drummond de Andrade)